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Em atenção a Geisy
Cláudia Versiani
Betty Friedan deve estar se revirando na tumba. Mais de quarenta anos depois do movimento feminista que ela liderou, a estudante Geisy Arruda quase foi expulsa da Universidade Bandeirantes (Uniban), depois de agredida pelos colegas por estar de roupa curta e justa.
Nessa época de cachorras, de cervejaria cujo nome é um adjetivo pejorativo para denominar mulheres ditas “fáceis” e de outros que tais, o que pensar? Vivemos uma regressão? A sociedade esqueceu o passado? A juventude, mais pragmática e menos ideológica, é alienada e não está nem aí? As mulheres abriram mão de suas conquistas, ou talvez desconheçam os direitos pelos quais se bateram as que vieram antes delas?
Não sejamos pessimistas. Nem tudo está perdido. A Diretoria de Mulheres da União Nacional dos Estudantes (UNE) lançou nota exemplar. Vale reproduzir alguns trechos:
“É (...) fruto de uma construção cultural, e não biológica, que os homens não podem controlar seus instintos sexuais e as mulheres devem se resguardar em roupas que não ponham seus corpos à mostra. (...) As mulheres devem seguir regras de conduta e comportamento ideais, a partir de um padrão estético que as condiciona a viver sob as rédeas da sociedade (...).
Esse desfecho (tentativa de expulsão da aluna), somado às diversas abordagens distorcidas do fato na mídia, demonstram a situação de opressão que todas nós, mulheres, vivemos em nosso cotidiano. Situação em que mulheres, e tudo o que está relacionado a elas, são desvalorizadas e depreciadas. A mulher é vista como uma mercadoria - ora utilizada para vender algum produto, ora tolhida de autonomia e direitos, ora violentada, estigmatizada e depreciada. É essa concepção que acaba por produzir e reproduzir o machismo, violência e sexismo próprios do patriarcado. Tal concepção permitiu o desrespeito à estudante.
Nós, mulheres estudantes brasileiras, em contraposição a essa situação, estamos constantemente em luta até que todas as mulheres sejam livres do machismo, da violência, do desrespeito e da opressão que nos cerca.
Repudiamos o ato de violência dos alunos contra a estudante de turismo, repudiamos a reação da mídia que insiste em mistificar o fato e não colocar a violência de cunho sexista no centro do debate, e denunciamos a atitude da universidade de punir a estudante ao invés daqueles que provocaram tal situação.”
É curioso – e dramático – que Geisy, e não seus agressores, tenha sido vista como merecedora de punição tão drástica. Mas é também curioso e dramático que, anos atrás, um amigo promotor de justiça, pessoa que considerávamos dos “nossos”, da turma de praia e chope, tenha justificado o ato de um estuprador pela roupa pouco decente que a vítima usava. Tal e qual a direção da Uniban, que tentou expulsar a moça. Tal e qual denuncia a nota da UNE.
O machismo e a violência sexista têm raízes profundas. São muitos séculos, muitos milênios. Confúcio já dizia que a mulher é o que há de mais corrupto e corruptível. Aristóteles a considerava como um homem inferior. As Leis de Manu, livro sagrado da Índia, dizem que uma mulher nunca deve governar a si própria. O Alcorão afirma que não se legou maior calamidade ao homem do que a mulher. Petrarca achava a mulher inimiga da paz, fonte de inquietação, causa de brigas que destroem a tranquilidade. Até mesmo Hegel garantia que a mulher pode ser educada, mas que sua mente não é adequada às ciências mais elevadas, à filosofia e a algumas das artes.
Com tantos antecedentes, não é de se espantar o que aconteceu. Muita água passou por debaixo da ponte. As coisas mudaram. Mas nem tanto. A Uniban e os seus alunos estão aí mesmo para esfregar na nossa cara, na cara da Geisy, o resultado desse aprendizado e desse treinamento milenar a que os homens – e também as mulheres - foram submetidos.
Mas não desanimemos. Encaremos a questão de modo dialético. A realidade é contraditória e está em permanente transformação. São três passos para frente e dois para trás. Salva-se um passo, que foi andado e do qual não abdicaremos.